quarta-feira, 28 de abril de 2010

Marx contra o Estado? – Os enganos de um professor de filosofia

*Por José Carlos Ruy

Renato Janine Ribeiro investe contra Lenin, contra os comunistas e contra os partidos comunistas. Eles teriam adulterado o pensamento de Marx, do qual teriam se apropriado indevidamente, deixando na sombra um Marx “democrático” – tese que não se sustenta mesmo com um superficial exame das obras dos fundadores do socialismo moderno.

Uma cadeira acadêmica não significa o conhecimento automático da obra de um pensador como Karl Marx. É o que se pode concluir do artigo do professor Renato Janine Ribeiro, titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, publicado em O Estado de S. Paulo (27/04/2010), sob o título "Marx sem Lenin".

No afã de transformar Marx num mero liberal, Janine torce afirmações do fundador do socialismo moderno e afirma coisas que ele não defendeu, fazendo uma caricatura que o coloca entre o anarquista e o neoliberal ao atribuindo-lhe a defesa da destruição pura e simples do Estado.

Janine também acusa Lenin e os partidos comunistas de terem se apropriado, "indevidamente", do pensamento de Marx, falsificando-o. "Lenin adulterou o que havia de melhor em Marx - um certo espírito democrático", escreveu na conclusão de seu artigo, afirmando que não se pode "deixar Marx refém do comunismo histórico", que fez, a partir do leninismo, "um dos usos mais duvidosos que se pôde fazer do marxismo".

Cada um pode ter lá o seu próprio Marx na cabeça. O problema começa quando, para isso, faz afirmações que, elas sim, distorcem o pensamento originário de um autor (no caso, Marx) para fazê-lo caber em suas próprias inquietações. Renato Janine diz que o nome de Marx "foi fartamente invocado pelos partidos comunistas e/ou marxistas-leninistas no último século" e que "talvez esses partidos não passassem num exame sobre o pensamento de Marx". Nesse ritmo, adianta o que
imagina serem as posições de Marx sobre o Estado que, diz, não defendia nem o Estado máximo, nem o mínimo, mas "o Estado nenhum", aproximando-se dos anarquistas - e dos modernos neoliberais, é preciso dizer. E conclui que "esse Marx está muito longe do comunismo do século 20!"

Nosso comentador – e “modernizador” – de Marx investe contra Cuba e as experiências contemporâneas de construção do socialismo, mas seu foco principal é a questão do Estado que, tudo indica, não estudou a fundo seja na obra de Marx e Engels, seja nos escritos de Lenin, que Janine abomina e a quem atribui a fundação de um estado “totalitário e policial” e não a primeira experiência de construção do socialismo da história.

Não é necessário um estudo exaustivo para expor a "porosidade", digamos assim, dos argumentos do professor. A leitura do Manifesto do Partido Comunista; dos escritos históricos sobre a revolução na França (A Guerra Civil na França, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Lutas de Classe na França);da Crítica do Programa de Gotha, escrito por Marx em 1875; ou do próprio Lenin (particularmente O Estado e a Revolução, onde se surpreenderia ao encontrar uma enfática defesa do fim do Estado, ou o caderno com as anotações de Lenin para este livro, publicado sob o título de O Marxismo e o Estado) indicaria alguns pontos que Janine não levou em consideração.

Em primeiro lugar, são obras com abundantes argumentos pelo fim do Estado; neste ponto Janine tem razão. Mas, tudo indica, ele só teria lido esta parte da argumentação, deixando de lado a caracterização de classe do Estado que Marx e Engels queriam ultrapassar, e sem levar em conta principalmente o instrumento para realizar esta tarefa, o Estado de classe do proletariado. Eles deixaram, em seus escritos, frequentes referências à natureza do Estado contra o qual lutavam: ao Estado da burguesia. Finalmente, a descrição do caminho para se alcançar essa supressão: a instauração da ditadura democrática do proletariado.

As anotações de Lenin resumem esta argumentação espalhada pelos escritos de Mare Engels, e basta seu exame para demonstrar a falência teórica de Janine. Elas mostram que Marx e Engels estavam distantes dos anarquistas e dos liberais; que o Estado a ser destruído era uma organização concreta, o Estado da burguesia; que há um período de transição entre o capitalismo e o comunismo, o socialismo, durante o qual, para construir uma sociedade nova, o proletariado tem necessidade de um Estado próprio contra seus adversários de classe; finalmente que, sendo o Estado expressão de sociedades divididas em classes antagônicas, a condição para sua extinção é o fim anterior do capital e do capitalismo, e das próprias classes sociais.

Estas convicções foram mantidas por Marx e Engels durante sua longa atividade teórica e revolucionária. No Manifesto do Partido Comunista, de 1848, haviam caracterizado o poder político como a "a violência organizada de uma classe" contra outra e o Estado como o "comitê que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa". Contra o qual o primeiro passo da revolução proletária é a transformação do "proletariado em classe dominante", ou seja, "a conquista da democracia" e a construção de seu próprio Estado de classe.

Em 1872, numa carta a Teodoro Cuno, Engels dizia: acabe com o capital “e o Estado cairá por si só". E indicava a diferença, que considerava fundamental, entre o seu ponto de vista e o de Marx, e o dos anarquistas: "abolição do Estado sem uma revolução social prévia é um absurdo. A abolição do capital é precisamente a revolução social e implica uma mudança em todo o modo de
produção".

Engels voltou ao assunto num artigo escrito em 1883, por ocasião da morte de Marx, dizendo que, em relação ao fim do Estado, eles mantiveram "sempre a opinião de que para conseguir este objetivo – e outros muito mais importantes – da revolução socialista, a classe operária deve conquistar o poder político organizado do Estado e, com sua ajuda, derrotar a resistência da classe dos capitalistas e organizar a sociedade de maneira nova".

Este ponto de vista havia sido fixado por Marx, de maneira definitiva, em 1875 quando, nas anotações críticas ao Programa de Gotha (adotado pelo partido socialista alemão no congresso daquele ano), ele foi claro quanto à natureza do Estado no período de transição entre o capitalismo e o socialismo. Marx descreveu como os Estados modernos "assentam todos nas bases da moderna sociedade burguesa" sendo, portanto Estados de classe, burgueses. E reafirmou a fórmula que faz o escândalo dos antiestatistas (e antileninistas) de todos os tempos, a da necessidade de uma transição entre o capitalismo e o socialismo dirigida por um Estado cuja forma é a ditadura revolucionária do proletariado. "Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período de transformação revolucionária da primeira pela segunda. A este período corresponde um período de transição política, em que o Estado não poderá ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado", escreveu.

Onde está a diferença entre o pensamento de Marx e Engels e o pensamento de Lenin, a respeito da natureza do Estado e das condições de sua supressão, que Renato Janine assegura existir?

O estudo desapaixonado destes problemas indica, ao contrário, a continuidade entre o pensamento daqueles fundadores da moderna ciência política do socialismo e do proletariado, sendo Lenin o legítimo continuador da obra inaugurada em 1848 por Marx e Engels. Na época da revolução russa, foram os mencheviques que, paradoxalmente, traíram o pensamento de Marx ao se apegarem à letra de seus escritos como os crentes se fixam às obras canônicas de suas religiões. Eles deixaram de lado a realidade concreta da revolução russa que ocorria nas ruas e nos campos, e não nos livros, e cuja vitória, ao contrário do que pensa Renato Janine – e os críticos de Lenin de todos os tempos – confirmou os ensinamentos de Marx e Engels a respeito do poder político e de seu uso pelo proletariado.

A construção do socialismo na URSS sofreu vicissitudes terríveis em seu desenvolvimento, desfigurando o Estado proletário de direito e a democracia proletária que deveria viger sob ele. Foram problemas graves que precisam ser analisados e superados pelos comunistas e revolucionários. Mas a alternativa para eles não seria – como sugerem aqueles que pensam como Renato Janine – a
república democrático burguesa e suas instituições, mas a radicalização da democracia proletária e o reforço do poder do Estado proletário contra as ameaças das classes dominantes (internas e estrangeiras) e do controle social sobre aquele Estado.

Renato Rabelo, presidente nacional do Partido Comunista do Brasil, argumenta com razão que os teóricos do capitalismo são geriatras enquanto os defensores do socialismo são pediatras. Afinal, enquanto o tempo do capitalismo pode ser contado em séculos e este sistema revele os graves sintomas de sua senilidade histórica, o socialismo é ainda uma "criança histórica", com idade medida em poucas décadas. A história trágica do socialismo no século XX não autoriza as
conclusões de Renato Janine, de que "um projeto empenhado na extinção do Estado foi desviado para a construção de um Estado totalitário e policial." E muito menos sobre a descontinuidade entre um Marx "democrático" (o que significa esta palavra, neste contexto?) e um Lenin autoritário e que deformou sua obra.

Este engano histórico brutal só é possível em autores que só encaram a realidade através das páginas dos livros, à margem das experiências políticas concretas. Da mesma forma, seria de esperar que condenassem vivamente a república burguesa. Afinal, Napoleão, que consolidou o ideário da revolução francesa de 1789, tornou-se notável e cresceu na liderança do Estado burguês que nascia na França depois de metralhar manifestações populares em Paris e fuzilar e abusar da força das armas contra populações estrangeiras que ousassem resistir à ocupação pelas
tropas que comandava.

Ao considerar a história, Renato Janine parece acreditar mais em Pablo Milanez, que a descreveu poeticamente como um "carro alegre", do que com Engels, que a viu, no fim da vida, como "a mais cruel de todas as deusas". A história, enquanto existirem as classes sociais, é a história da luta de classes, e ela é implacável.

*José Carlos Ruy é jornalista e editor do jornal Classe Operária.

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